quinta-feira, 29 de abril de 2010

A vida como ela é, a Dama da Lotação – Nelson Rodrigues

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi ba­ter na casa do pai. O velho, que andava com a pressão baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:

— Você aqui? A essa hora?

E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo suspiro:

— Pois é, meu pai, pois é!

— Como vai Solange? — perguntou o dono da casa.

Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo vi­dro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bomba:

— Meu pai, desconfio de minha mulher.

Pânico do velho:

— De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é essa?

O filho riu, amargo:

— Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o diabo é que andei sabendo de umas coisas… E ela não é a mesma, mu­dou muito.

Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma explosão:

— Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um tostão!

Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:

— Imagine! Duvidar de Solange!

O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:

— Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato mi­nha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!


A SUSPEITA

Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de ótima família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de aposenta­doria, tinha uma dignidade de estátua; na família de Solange ha­via de tudo: médicos, advogados, banqueiros e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda parte, que era “um amor”; os mais entusiastas e taxativos afirmavam: “É um doce-de-coco”. Sugeria nos gestos e mesmo na figura fina e frágil qual­quer coisa de extraterreno. O velho e diabético general pode­ria pôr a mão no fogo pela nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia… Nessa mesma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos, numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acon­tece uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos. Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa, ape­nas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a conver­sa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação interior: “Ora essa! Que graça!”. A angústia se antecipou ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a suspeita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco. Todavia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à casa do pai para o primeiro desaba­fo. No dia seguinte, pela manhã, o velho foi procurar o filho:

— Conta o que houve, direitinho!

O filho contou. Então o general fez um escândalo:

— Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com es­sas bobagens!

Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da obses­são, o militar condescendeu em fazer confidências:

— Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade! Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela me traía! Vê se é possível?!


A CERTEZA

Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de qualquer maneira ele estava “certo”. Três dias depois, há o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo anuncia, alegremente:

— Ontem viajei no lotação com tua mulher.

Mentiu sem motivo:

— Ela me disse.

Em casa, depois do beijo na face, perguntou:

— Tens visto o Assunção?

E ela, passando verniz nas unhas:

— Nunca mais.

— Nem ontem?

— Nem ontem. E por que ontem?

— Nada.

Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no gabi­nete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange mentira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias. Voltou para a sala; dis­se à mulher entrando no gabinete:

— Vem cá um instantinho, Solange.

— Vou já, meu filho.

Berrou:

— Agora!

Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou, Carli­nhos fechou a porta, à chave. E mais: pôs o revólver em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz, nem fez gestos:

— Não adianta negar! Eu sei de tudo!

E ela, encostada à parede, perguntava:

— Sabe de que, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!

Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu que a fizera seguir por um detetive particular; que todos os seus pas­sos eram espionados religiosamente. Até então não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a identidade do cana­lha. Só no fim, apanhando o revólver, completou:

— Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a raça dele!

A mulher, até então passiva e apenas espantada, atracou-se com o marido, gritando:

— Não, ele não!

Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repelão sel­vagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:

— Ele não foi o único! Há outros!


A DAMA DO LOTAÇÃO

Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um mês depois do casamento, todas as tardes, saía de casa, apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço, feio ou bonito; e uma vez — foi até interessante — coincidiu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão azul, que saltaria pouco adian­te. O marido, prostrado na cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:

— Um mecânico?

Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:

— Sim.

Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já cutu­cara o rapaz: “Eu desço contigo”. O pobre-diabo tivera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram juntos: e esta aven­tura inverossímil foi a primeira, o ponto de partida para muitas outras. No fim de certo tempo, já os motoristas dos lotações a identificavam à distância; e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la. Mas esses anônimos, que passavam sem dei­xar vestígios, amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadeira, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?

Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltrano… Carlinhos berrou: “Basta! Chega!”. Em voz alta, fez o exagero melancólico:

— A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!

O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse ape­nas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, em­barcar no primeiro lotação. O marido a olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimen­tos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!”. E, de fato, ha­via, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a mão pelos quadris: — “Sem calça! Deu ago­ra para andar sem calça, sua égua!”. Empurrou-a com um pala­vrão; passou pela mulher a caminho do quarto; parou, na por­ta, para dizer:

— Morri para o mundo.


O DEFUNTO

Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco depois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos esteve imóvel e mu­da, numa contemplação maravilhada. Acabou murmurando:

— O jantar está na mesa.

Ele, sem se mexer, respondeu:

— Pela última vez: morri. Estou morto.

A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à emprega­da que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em ca­sa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou. Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou. Depois do que ela pró­pria fazia nos lotações, nada mais a espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguinte, a mesma cena. E só saiu, à tar­de, para sua escapada delirante, de lotação. Regressou horas de­pois. Retomou o rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

2 comentários:

Amélia Ribeiro disse...

Olá Geovana linda!

Uma maravilha o teu texto.

Há um presente no meu blog que quero partilhar contigo... dessa forma quero que participes da minha alegria... se o desejares leva-o... ficaria muito feliz...!!!

Um beijo.

Alma Inquieta

Geovana disse...

Oi Alma, obrigada pelo presente, vou busca-lo já, já.

Quanto ao texto, é bem famoso por aqui, faz parte dos famos contos de Nelson Rodrigues. Ele é, para mim, o escritor brasileiro mais imaginativo, depois de Machado de Assis.